E chove, sabe o que penso quando ouço o barulho das gotas de chuva no telhado ? Em todas as pessoas que queriam estar juntas,em todos os corações solitários que choram tanto quanto a quantidade de lágrimas que caem do céu, penso em você. Onde está, o que fazes, se pensa em mim também. Dá vontade de ouvir sua voz rouca meio malandra. Te ligo e desligo antes de atender. Sento, fico com o telefone na mão e penso no que dizer para não parecer uma carente louca. Enfim, crio coragem, telefono e não penso mais em nada, deixo falar o que surge na minha cabeça. O telefone toca uma, duas vezes e na terceira já quero desistir de novo. Já é tarde, e ele provavelmente deve estar dormindo, com seus milhares de travesseiros pra preencher a cama.
Na quarta chamada ele atende, a voz rouca e um pouco sonolenta. Repetidas vezes ele diz alô, começando a ter um tom aborrecido. Finalmente respondo e me desculpo dizendo que não estava o ouvindo bem por conta do barulho da chuva e por estar ligando tão tarde. Ele de imediato me repreende por essa minha mania de sempre pedir desculpas tantas vezes por tão pouco. E eu do lado de cá da linha sorrio calada só imaginando ele gesticular da forma hiperativa que conheço.
Andando de um lado pra outro, encontro um papel e uma caneta e começo a rabiscar ,desenhar borboletas,corações e nossos nomes.Pergunto sobre a vida,trabalho e logo consigo um pretexto pra falar um dos motivos da minha ligação.
-Me desculpa de novo por te ligar tarde, você precisa trabalhar e eu te pertubandopertubando, mas estou com medo.
Ele engrossa a voz e nesse momento tenho certeza que já esta no limite de paciência que ele pode ter com alguém e responde:
-Você é cabeça dura mesmo, sempre foi.Quantas vezes tenho que repetir que não precisa se desculpar? Se eu não quisesse falar com você ou não atenderia ou dava desculpa para desligar.
-Des .. quer dizer, tá bom. Mas não precisa brigar comigo, só não queria te incomodar.
-Mas por que você está com medo?
-É que está chovendo, você percebeu ?
-Sim, e qual o problema? Vai me dizer que ...
-Eu tenho medo ! Medo de trovão, medo de estar sozinha se faltar luz. Esqueceu ?
Ele começa a gargalhar compulsivamente e e sinto uma idiota. Taí, umas das coisas que eu mais temia que acontecesse, fazer o papel de total idiota.
-E o que o trovão pode fazer com você, me diz? Vai se transformar numa pessoa e te levar pro além ? hahaha. Você é hilária, tinha me esquecido o quanto.
-Você não me ajuda em nada, pode voltar a dormir, vou pedir ajuda a alguém que se importe comigo.
Ele na mesma hora muda de tom e insiste para que eu não desligue e fazendo papel inverso, se desculpa.
-Que ironia, nunca pensei em você se desculpar. Aliás, sempre esperei por este momento.
Ele reage com o sarcasmo de costume
-Engraçadinha você. Posso desligar então, já está fazendo piadinha então o medo passou, não é ?
-Então tchau, bons sonhos ... não quero ser culpada pelo seu mau desempenho depois que ...
De repente um clarão na rua e segundos depois não se via mais nenhum ponto luminoso pela janela. Grito e saio correndo para debaixo do edredon.Cubro me dos pés a cabeça, afinal de contas é no escuro que as surpresas acontecem. Começo a ouvir uma voz e demoro a perceber que era ele ainda no telefone.
-Alô, fala comigo ! Está me ouvindo ? Alô !
Com a voz abafada debaixo das cobertas e ofegante de tanto correr respondo.
-Estou te ouvindo sim. Estou com tanto medo. Ainda tem luz ai?
-Não, black out. Você está bem? . Repete ele várias vezes.
-Por favor, não pare de falar comigo senão eu morro.
-Falar o que ? Eu não sei!
-'Qualquer coisa, fale !'
-Então tá bom . Mas por que mesmo você me ligou? Você não acha que ia me enganar com o papo só do medo, né?
Fiquei calada, pensei. Será que deveria falar ou não? Fechei os olhos e deixei me levar.
-Eu te liguei porque estou com saudade, é isso, saudade. Pronto, falei. Boa noite
-Não, não! Não desliga, só acho que você poderia ter me dito antes.
-Por causa do orgulho, sempre orgulho. Estou me sentindo uma ridícula, vou tentar dormir de verdade.
-Mentirosa, você nunca dorme até que a luz volte. Me lembro de uma vez que ficou em claro até o dia amanhecer e ficou linda com aquelas olheiras e um mau humor que me manteve distante por quase uma semana.
-Tá vendo, não há mais respeito. Até de mentirosa me chama. Quer saber, durma bem, deixa que me viro, já estou grandinha demais pra depender de você.
Desligo o telefone e esbravejo quinhentos e quarenta e cinco vezes por não ter pensado antes de pegar nesse maldito telefone. Fecho os olhos e por segundos vejo o rosto dele sorrindo para mim. Não era possível, eu já estar sonhando com ele de novo antes mesmo de dormir?
Abri os olhos, tirei as cobertas e sento na cama. O telefone começa a tocar e me jogo debaixo delas de novo acreditando ser a Samara me dizendo que me restam 7 dias antes dela me atacar.
Atendo com a voz tremula.
-Alô, quem é?
-Sou eu .Você acha mesmo que ia te deixar sozinha, no escuro, chovendo e com esses trovões que há anos não vejo tão barulhentos? Abre a porta,estou aqui em baixo.
Fico incrédula.
-Olha, se você acha mesmo que vou descer as escadas sem enchergar um palmo na minha frente, podendo uma assombração puxar meus pés e eu chegar na porta e não ter ninguém você está muito enganado.
-Então tá, se você preferir que eu arrombe a porta eu não ligo, de verdade.
-Bate na porta pra eu ter certeza que está aqui.
Ouço um toc toc. Abro um sorriso imediatamente.
-Estou indo
Ao abrir a porta, ele me abraça. E todo molhado de tanta chuva que pegou por minha causa. O convido para entrar e reclamo por ele continuar com o hábito de não usar guarda chuva. Ele faz charme, aquela chantagem barata.
-Vim aqui, peguei essa chuva toda no escuro por você e ainda briga comigo .Vou embora. E ameaça se levantar.
Seguro pelo braço e quase me desculpo mais uma vez.
-Sabia que eu estava com saudades de você?Disse ele .
-Estava nada, você nunca disse isso. Tá falando só pra tentar me agradar.
-Não é preciso dizer tudo pra provar que se sente.
Sorrio boba, completa.
Ele me puxa pela cintura e me beija, ali mesmo.De olhos fechados, o escuro se acabou. Era iluminado,colorido. Tão feliz. Como eu pude imaginar que naquela ligação cheia de medo faria com que o que mais desejava acontecesse, sem eu ter que pedir, sofrer. Depois de tanto tempo, ao certo não sei quanto tempo se passou, começo a rir no meio do momento filme-comédia-romântica. Ele me olha com aquela sobrancelha franzida de nada entender e explico que preciso sorrir, gargalhar. É a felicidade transbordando em mim e logo ele começa a achar graça da minha gargalhada escandalosa intercalando bicos de beijo.
Logo a luz retorna, acendendo todas as luzes da casa.
Eu, de pijama do piu piu e ele com a jaqueta encharcada e a velha calça de moletom.
Lembro de ter ido dormir considerando meu dia mais feliz dos últimos anos. E acordei mais feliz ainda por perceber que foi tudo realidade, com ele preenchendo minha cama e iniciando meu dia com um café da manhã na cama, uma flor e um beijo. Bom dia, meu amor .